domingo, 3 de fevereiro de 2008

Dois Poemas de Cabral do Nascimento

O faroleiro
Apenas este ilhéu é que é pequeno
O resto é tudo grande: o tédio, a vida,
O dia enorme, a noite mais comprida,
E o mar, calmo ou feroz, rude ou sereno;

O tempo, esse narcótico veneno,
A dor, essa letárgica bebida,
O desejo, essa voz enrouquecida,
E a saudade, o distante e branco aceno.

Tudo profundo, imenso, na amplidão,
Eterno quási na desolação
E sobrenatural na solidão.

A luz vermelha a reflectir-se além…
Nenhum vapor que vai, nenhum que vem…
Farol e faroleiro – e mais ninguém.


Aos cativos
Vós outros, que sois cativos,
Grilos dentro de gaiola;
Aves, que andastes à solta,
E vos prenderam à argola;
Peixes nalguma redoma,
Muito mais mortos que vivos, -
Ouvi:
Maior prisão é cá dentro.

Vós outros, que sois cativos,
Com ferrolhos pelas portas,
E chaves de muitas voltas,
Medonhas grades por fora,
E luz, por dentro, tão pouca,
E antes mortos do que vivos, -
Ouvi:
Preso está quem anda à solta.

Mas seja assim, muito embora,
Vós outros, que sois cativos,
Minh’ alma não vos ignora
Nesta prisão de aqui fora,
Onde é noite a toda a hora,
E, condenados, os vivos
Parecem mortos agora; -
Ouvi:
O tempo tudo melhora


NASCIMENTO, Cabral do – Cancioneiro. Lisboa: Edições Gama, 1943. P.61-62, 107-108.

Sem comentários: